REVISTA ESPÍRITA DEZEMBRO DE 1860
Na sessão da Sociedade, do dia 23 de novembro, o Espírito de Alfred de Musset tendo se manifestado espontaneamente, a pergunta seguinte lhe foi dirigida: A pintura, a escultura, a arquitetura, a poesia, foram alternativamente inspiradas pelas ideias pagas e cristãs; quereis nos dizer se, depois da arte pagã e da arte cristã, haverá, um dia, a arte espírita?
– O Espírito respondeu:
“Fizestes uma pergunta que se responde por si mesma; o verme é verme, torna-se verme de seda, depois borboleta. O que ha de mais aéreo, de mais gracioso do que uma borboleta? Pois bem, a arte paga, é o verme; a arte cristã, é o envoltório; a arte espírita será a borboleta.”
Quanto mais se aprofunda O sentido dessa graciosa comparação, mais se lhe admite a justeza. À primeira vista, poder-se-ia supor, ao Espírito, a intenção de rebaixar a arte crista, colando a arte espírita no coroamento do edifício; mas não é nada disso, e basta meditar esta poética figura para apanhar-lhe a justeza. Com efeito, o Espiritismo se apoia essencialmente sobre o Cristianismo; não vem substituí-lo, completa-o e veste-o com uma roupa brilhante.
Na infância do Cristianismo, encontram-se os germes do Espiritismo; se se repelissem mutuamente, um renegaria o seu filho e o outro o seu pai. O Espírito, em comparando o primeiro ao verme e o segundo à borboleta, indica perfeitamente o laço de parentesco que os une; há mais: a própria figura pinta o caráter da arte que um inspirou e que o outro inspirará.
A arte cristã, sobretudo, deveu se inspirar nas terríveis provas dos mártires e revestir a severidade da origem materna; a arte espírita, representada pela borboleta, se inspirará nos vaporosos e esplêndidos quadros da existência futura desvendada; alegrará a alma que a arte cristã tomara de admiração e de temor; será o canto de alegria depois da batalha.
O Espiritismo se reconhece todo inteiro na teogonia paga, e a mitologia não é outra coisa senão o quadro da vida espírita poetizada pela alegoria. Quem não reconhece o mundo de Júpiter nos Campos Elíseos, com os seus habitantes de corpos etéreos; e os mundos inferiores no seu Tártaro; as almas errantes nos manes, os Espíritos protetores da família nos lares e nos penai es; no Letes, b esquecimento do passado no momento da reencarnação; nas suas pitonisas, os nossos médiuns videntes e falantes; em seus oráculos, as comunicações com os seres de além-túmulo? A arte, necessariamente, deveu se inspirar nessa fonte tão fecunda para a imaginação; mas para se elevar até o sublime do sentimento, falta-lhe o sentimento por excelência: a caridade cristã. Os homens não conhecem senão a vida material; a arte procurou, antes de tudo, a perfeição da forma. A beleza corpórea era então a primeira de todas as qualidades: a arte se interessou em reproduzi-la, em idealizá-la; mas só ao Cristianismo estava dado fazer ressaltar a beleza da alma sob a beleza da forma; também, a arte cristã, tomando a forma na arte paga, acrescentou-lhe a expressão de um sentimento desconhecido dos Antigos.
Mas, como dissemos, a arte cristã deveu se ressentir da austeridade de sua origem, e se inspirar nos sofrimentos dos primeiros adeptos; as perseguições impeliram à vida de isolamento e de reclusão, e a idéia do inferno à vida ascética; é por isso que a sua pintura e escultura, em suas três quartas partes, sobressaem pelo quadro das torturas físicas e morais; a arquitetura nela reveste um caráter grandioso e sublime, mas sombrio; sua música é grave e monótona como uma sentença de morte; a sua eloquência é mais dogmática do que tocante; a própria beatitude nela traz marca de tédio, de ociosidade e de satisfação toda pessoal; aliás, ela está longe de nós, tão alto colocada, que nos parece quase inacessível, por isso nos toca tão pouco quando não a vemos reproduzida sobre a tela ou o mármore.
O Espiritismo nos mostra o futuro sob uma luz mais à nossa altura; a felicidade está mais perto de nós, está ao nosso alcance, nos seres mesmo que nos cercam e com os quais podemos entrar em comunicação; a morada dos eleitos não é mais isolada: há solidariedade constante entre o céu e a terra; a beatitude não está mais numa contemplação perpétua, que não seria senão uma eterna e inútil ociosidade, ela está numa constante atividade para o bem, sob o próprio olhar de Deus; está, não na quietude de um contentamento pessoal, mas no amor mútuo de todas as criaturas chegadas à perfeição. O mau não está mais relegado às fornalhas ardentes, o inferno está no próprio coração do culpado que encontra, em si mesmo, o seu próprio castigo; mas Deus, em sua bondade infinita, deixando-lhe o caminho do arrependimento, ao mesmo tempo, deixa-lhe a esperança, essa sublime consolação do infeliz.
Que fontes fecundas de inspiração para a arte! Que obras-primas essas ideias novas não podem criar pela reprodução de cenas tão variadas e, ao mesmo tempo, tão suaves ou tão pungentes da vida espírita! Quantos assuntos, ao mesmo tempo, poéticos e palpitantes de interesse nesse comércio incessante dos mortais com os seres de além-túmulo, na presença, junto a nós, dos seres que nos são queridos! Isso não será mais a representação de despejos frios e inanimados, será a mãe tendo ao seu lado a sua filha querida, em sua forma etérea e radiosa de felicidade; um filho ouvindo com atenção os conselhos de seu pai que vela por ele; o ser pelo qual se pede vem testemunhar o seu reconhecimento. E, numa outra ordem de ideias, o Espírito do mal soprando o veneno das paixões, o mau fugindo da visão de sua vítima que lhe perdoa, o isolamento do perverso no meio da multidão que o repele, a perturbação do Espírito no momento do despertar, a sua surpresa diante da visão de seu corpo do qual se espanta por estar separado, o Espírito do defunto no meio dos seus ávidos herdeiros e amigos hipócritas; e tantos outros assuntos tanto mais capazes de impressionar quanto tocam mais de perto a vida real. O artista quer se elevar acima da esfera terrestre?
Ele encontrará assuntos não menos interessantes nesses mundos felizes que os Espíritos se comprazem em descrever, verdadeiros Édens de onde o mal está banido, e nesses mundos ínfimos, verdadeiros infernos, onde todas as paixões reinam soberanas.
Sim, nós o repetimos, o Espiritismo abre à arte um campo novo, imenso, e ainda inexplorado, e quando o artista trabalhar com convicção, como trabalharam os artistas cristãos, haurirá nessa fonte as mais sublimes inspirações.
Quando dizemos que a arte espírita será um dia uma arte nova, queremos dizer que as ideias e as crenças espíritas darão, às produções do gênio, um cunho particular, como ocorreu com as ideias e as crenças cristãs, não que os assuntos cristãos jamais caiam em descrédito, longe disso, mas, quando um campo está respigado, o ceifeiro procura colher alhures, e colherá abundantemente no campo do Espiritismo. Já o fez, sem dúvida, mas não de um modo tão especial como o fará mais tarde, quando para isso será encorajado e excitado pelo assentimento geral; quando essas ideias estiverem popularizadas, o que não pode tardar, porque os cegos da geração atual desaparecem, cada dia, da cena pela força das coisas, e a geração nova terá menos preconceitos. A pintura f oi mais de uma vez inspirada por ideias desse gênero; na poesia sobretudo elas pululam, mas estão isoladas, perdidas na multidão; o tempo virá em que farão eclodir obras magistrais, e a arte espírita terás seus Rafaéis e seus Miguel-Ângelos, como a arte paga teve os seus Apeles e os seus Fídias.
(…) Aproveitando da boa vontade do Espírito de Alfred de Musset, foram-lhe dirigidas as perguntas seguintes:
- Qual será a influência da poesia no Espiritismo?
– R. A poesia é o bálsamo que se aplica sobre as feridas; a poesia foi dada ao homem como um maná celeste, e todos os poetas são médiuns que Deus enviou sobre a Terra para regenerar um pouco o seu povo, e não deixá-los embrutecer inteiramente; porque, o que há de mais belo! O que fala mais à alma do que a poesia!
- A pintura, a escultura, a arquitetura, a poesia foram alternativamente influenciadas pelas ideias pagas e cristãs; quereis nos dizer se, depois da arte paga e da arte cristã, haverá um dia a arte espírita?
– R. Fazeis uma pergunta que se responde por si mesma: o verme é verme, torna-se verme de seda, depois borboleta. O que há de mais aéreo, de mais gracioso do que uma borboleta? Pois bem! A arte paga, é o verme; a arte cristã é a crisálida; a arte espírita será a borboleta.
ARTE NO CENTRO ESPÍRITA – PLANEJAMENTO E PRÁTICA
Associação Brasileira de Artistas Espíritas – ABRARTE
Capítulo 1
Fundamentação Doutrinária
O centro espírita é definido como sendo, ao mesmo tempo, escola, hospital, templo, oficina e lar. Para bem cumprir essas múltiplas funções ele deve mobilizar todos os recursos doutrinariamente legítimos. Recursos que facilitem o aprendizado, que ajudem a minimizar as dores da alma, propiciem maior sintonia com o sagrado, estimulem o trabalho no bem e ensejem clima para a convivência harmônica entre os que participam de suas atividades.
Percebemos que a arte reúne em si todas essas qualidades, quando analisada e trabalhada através do saber espírita. O drama que comove e educa, a música que eleva, a poesia que leva à reflexão, a dança que inspira, a pintura que influencia, ou o filme que estimula são recursos que não podem ser dispensados na promoção do bem, no socorro das almas sofridas e no apoio de quem busca evolução. Os conteúdos nobres, propiciados pela Doutrina Espírita e pelo Evangelho de Jesus, transformam a arte em instrumento sublime que muito pode fazer pelo público que frequenta ou pelos trabalhadores que atuam no centro espírita.
A literatura espírita é rica em manifestações sobre as nobres funções da arte como instrumento do bem.
O Livro dos Espíritos, através das questões 316, 521, 565 e 566, traz importantes informações acerca da relação entre os Espíritos e as artes.
No mês de dezembro de 1860, Allan Kardec publica na Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos, o artigo Arte Pagã, Arte Cristã e Arte Espírita, apresentando a mensagem de Alfred de Musset ocorrida em 23/11/1860, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Foi a primeira vez que o termo Arte Espírita apareceu e começou a ser discutido. Dessa data até os dias de hoje muito se postulou e muito se praticou sobre este tema.
No livro Obras Póstumas temos, em sua primeira parte, o capítulo intitulado Influência perniciosa das idéias materialistas – Sobre as artes em geral; a regeneração delas por meio do Espiritismo. Percebemos que, indubitavelmente, o Espiritismo tem muito a oferecer à arte.
Ao longo dos anos, vários autores espirituais retomaram a discussão acerca das correlações entre arte e espiritismo, o que demonstra a importância e o compromisso da espiritualidade para com o assunto.
O espírito Áulus assim a define:
“A Arte é a mediunidade do Belo, em cujas realizações encontramos as sublimes visões do futuro que nos é reservado”
André Luiz (Xavier, Francisco Cândido. Nos Domínios da Mediunidade, cap. 30, FEB).
Por essa definição, a arte é apresentada como instrumento para que o belo existente nas esferas espirituais se expresse no mundo físico, permitindo ao ser encarnado antevisão das realizações nobres que o futuro nos reserva.
Emmanuel considera a arte instrumento para percepção das belezas eternas e para exteriorização dos ideais nobres que fortalecem a esperança do porvir sublime.
“A arte pura é a mais elevada contemplação espiritual por parte das criaturas. Ela significa a mais profunda exteriorização do ideal, a divina manifestação desse “mais além” que polariza as esperanças das almas”.
Emmanuel (Xavier, Francisco Cândido. O Consolador, Questão 161, FEB).
Leon Denis apresenta a arte como a forma pela qual o esplendor da beleza originária de Deus pode se tornar acessível para a maioria dos homens. Considera que a arte pode ser o grande veículo para dar expressão aos ensinamentos e revelações que o Espiritismo propicia. Vejamos:
“A arte é a busca, o estudo, a manifestação dessa beleza eterna, da qual aqui na Terra não percebemos senão um reflexo. Para contemplá-la em todo o seu esplendor, em todo o seu poder, é preciso subir de grau em grau em direção à fonte da qual ela emana, e esta é uma tarefa difícil para a maioria de nós. Ao menos podemos conhecê-la através do espetáculo que o universo oferece aos nossos sentidos, e também através das obras que ela inspira aos homens de talento.
O Espiritismo vem abrir para a arte novas perspectivas, horizontes sem limites. A comunicação que ele estabelece entre os mundos visível e invisível, as informações fornecidas sobre as condições da vida no Além, a revelação que ele nos traz das leis superiores da harmonia e da beleza que regem o universo vêm oferecer a nossos pensadores, a nossos artistas, inesgotáveis temas de inspiração.”
“O conhecimento das vidas sucessivas do ser, sua ascensão dolorosa através dos séculos, o ensinamento dos espíritos a respeito dessa grandiosa questão do destino, lançarão, em toda a história, uma inesperada luz, e fornecerão ainda aos romancistas, aos poetas, temas de drama, móbeis[1] de elevação, todo um conjunto de recursos intelectuais que ultrapassarão em riqueza tudo o que o pensamento já pôde conhecer até o momento.”
“O materialismo, com sua insensibilidade, havia esterilizado a arte. Esta arrastava-se na estreiteza do realismo sem poder elevar-se ao máximo da beleza ideal. O Espiritismo vem dar-lhe novo curso, um impulso mais vivo em direção às alturas, onde ela encontra a fonte fecunda das inspirações e a sublimidade do gênio”
Léon Denis (O Espiritismo na Arte, Capítulo I, Publicações Lachâtre).
O Espírito Vianna de Carvalho considera a arte como recurso para expressar a beleza invisível visando despertar a sensibilidade dos seres humanos para as aspirações nobres da evolução, como segue:
“A arte tem como meta materializar a beleza invisível de todas as coisas, despertando a sensibilidade e aprofundando o senso de contemplação, promovendo o ser humano aos páramos da Espiritualidade. Graças à sua contribuição, o bruto se acalma, o primitivo se comove, o agressivo se apazigua, o enfermo se renova, o infeliz se redescobre, e todos os outros indivíduos ascendem na direção dos Grandes Cimos. (..) Desse modo, evolui do grotesco ao transcendental, aprimorando as qualidades e tendências, que estarão sempre à frente dos comportamentos de cada época. Lentamente, a Arte se desenvolve alterando os conteúdos e melhor qualificando a mensagem de que se faz portadora”.
Vianna de Carvalho. (Franco, Divaldo Pereira. Atualidade do Pensamento Espírita, p. 126).
Todas essas considerações conduzem ao entendimento de que a arte tem um papel importante a desempenhar nos abençoados espaços onde os ensinamentos do Espiritismo são veiculados. Não apenas um papel esporádico e limitado aos momentos festivos, e sim um papel destacado, sistemático e de regularidade ordinária. Um papel que lhe atribua dimensão similar às demais atividades da casa no socorro às dores e inquietudes dos que batem às suas portas, em busca de consolo e orientação.
Para que se concretizem as previsões de Kardec e dos Espíritos superiores acerca da influência do Espiritismo sobre as artes, faz se necessário, por parte das lideranças espíritas, maior incentivo nesta área. É fundamental o investimento no estudo sério sobre o tema e a criação de condições da prática e do aprimoramento das artes por parte daqueles que professam a Doutrina dos Espíritos.
“Dentro em pouco, também vereis as artes se acercarem dele (Espiritismo), como de uma mina riquíssima, e traduzirem os pensamentos e os horizontes que ele patenteia, por meio da pintura, da música, da poesia e da literatura. Já se vos disse que haverá um dia a arte espírita, como houve a arte pagã e a arte cristã. É uma grande verdade, pois os maiores gênios se inspirarão nele. Em breve, vereis os primeiros esboços da arte espírita, que mais tarde ocupará o lugar que lhe compete.
Allan Kardec (Obras Póstumas, Segunda Parte. A minha primeira Iniciação no Espiritismo. Paris 24 de abril de 1866 – Regeneração da Humanidade, penúltimo parágrafo).
CADERNOS DE ARTE DA ABRARTE
A Arte Espírita Perante a Tradição.
“Assim como a Arte cristã sucedeu a Arte pagã, transformando-a, a Arte espírita será o complemento e a transformação da Arte cristã.” – Allan Kardec
A frase acima tem sido utilizada por artistas espíritas e entusiastas de sua arte como verdadeira bandeira das novas ideias que bafejarão a renovação moral da arte. É de fato uma bela imagem que apreende, em poucas linhas, séculos de história da produção humana.
Dada a relevância da afirmação kardequiana, é justo que sobre ela nos debrucemos, problematizando-lhe o sentido e buscando entender qual será o lugar da Arte Espírita no contexto das manifestações artísticas em geral. Para tanto, traçarei um pequeno panorama histórico, evidentemente resumido por questões do espaço que seria necessário para um roteiro mais completo.
Detenhamo-nos, de início, no que o Codificador chama de Arte pagã. O termo “paganismo” tem sido tomado como designativo de tudo aquilo que não se refere ao cristianismo, sendo seu significado mais completo aquele que dá conta de sua ligação às doutrinas politeístas. Quando Kardec utiliza o termo em se tratando de arte está retratando bem a mentalidade de sua época (que também é a de nossa própria) que divide a história humana em duas fases, sendo o nascimento do Cristo seu marco.
Que não se pense, no entanto, que a expressão pagã é empregada por Kardec de modo pejorativo.
Nem se pode dizer, em se tratando de arte, que a de um tipo ou povo é superior ou inferior em comparação com outras manifestações estéticas que se sucedem no espaço e no tempo.
Sabe-se que as primeiras manifestações artísticas remontam à pré-história e que as chamadas pinturas rupestres, qualquer que fosse sua função cujo conhecimento se perdeu na esteira do tempo, não eram todas iguais, já apresentando diferenças que se poderiam chamar, por comparação, de estilos individuais. Posteriormente, em diversas civilizações, as manifestações artísticas ligavam-se ora à religiosidade, ora a questões puramente estéticas.
Portanto, o vocábulo “pagã” é utilizado por Kardec, e por outros intelectuais de sua época, apenas com a finalidade de estabelecer uma linha temporal.
Com o advento do cristianismo e posteriormente sua disseminação pelo mundo mediante diversos movimentos sócio-político-religiosos, a chamada arte cristã passa então a ser a representante direta do poder da igreja. Esta arte dividia espaço com a arte profana (pro = fora; fanum = templo; literalmente de fora do templo) e com ela se comunicava, retirando da tradição artística os elementos que lhe eram necessários para constituir-se enquanto ARTE e fugir do puro e simples proselitismo.
Os diversos estilos ou tendências estéticas que se sucedem no tempo, nada mais são que mostras do pensamento humano em determinada época. Cada estilo buscará na estética anterior os elementos mediante os quais se constituirá como arte, seja através de sua manutenção, seja por sua negação (o que é mais frequente).
Tomando a frase de Kardec em seu aspecto mais simples, pode-se dizer que a arte espírita será filha natural da Arte Cristã, que por sua vez é filha da Arte Pagã, uma configuração resumida do conceito de tradição.
Mas o que exatamente é a tradição? Cito como tentativa de resposta a definição de Octavio Paz:
Entende-se por tradição a transmissão, de uma geração a outra, de notícias, lendas, histórias, crenças, costumes, formas literárias e artísticas, ideias e estilos; […] (1984: 17)
A Arte Espirita será portanto a herdeira de toda a riqueza de séculos de arte, não havendo possibilidade de ela se constituir sozinha, i.e., sem o diálogo com a tradição cultural humana de séculos e séculos.
Apresentam-se aqui questionamentos relevantes: O artista espírita precisa conhecer arte para fazer arte? A Arte Espírita necessita dialogar com a tradição e a contemporaneidade? Busquemos caminhos para as respostas.
O poeta e ensaísta americano T. S. Eliot assinala que a tradição é obtida pelo artista como resultado de um grande trabalho de aquisição, o que equivale a dizer que para fazer arte é preciso conhecer arte. Neste processo de enriquecimento cultural está envolvido o que Eliot chama de sentido histórico o qual
Compreende uma percepção não só do passado mas da sua presença; o sentido histórico compele o homem a escrever não apenas com sua própria geração no sangue, mas também com um sentimento de que toda a literatura desde Homero […] possui uma existência simultânea e compõe uma ordem simultânea. (1997: 22-3)
Concebemos, portanto, que a Arte Espírita não poderá ser arte por excelência se menosprezar o processo histórico do qual é resultante. Aquele que se propõe a se expressar com conteúdo espírita aliado à qualidade estética deve investir em seu processo de aquisição cultural. Ainda segundo Eliot:
Nenhum poeta, nenhum artista de qualquer arte, detém, sozinho, o seu completo significado.
O seu significado, a sua avaliação, é a avaliação da sua relação com os poetas e artistas mortos. […] Os monumentos existentes formam uma ordem ideal, a qual é modificada pela introdução da nova, da verdadeiramente nova, obra de arte. (l997:23)
E quanto ao lugar da Arte Espírita no contexto da tradição? Simples, o mesmo lugar que ocupa a Arte Cristã. A Arte Espírita será mais uma dessas rupturas presentes em toda a tradição da cultura humana. E é justamente por ser ruptura que se ligará à tradição, se levarmos em conta a afirmativa de Octavio Paz que, em Os filhos do barro, assevera a existência de uma tradição da ruptura que implicaria numa dupla negação: da tradição e a da própria ruptura. Em termos mais simples pode-se afirmar que a Arte Espírita necessita ter o seu tanto de tradição e o seu tanto de ruptura para que realmente seja ARTE.
Retomando a frase de Kardec, a Arte Espírita complementará a tradição pois, assim como todas as expressões da sensibilidade humana, desenvolverá elementos latentes das artes que estão aguardando serem devidamente observados; será a sua transformação ao apontar rumos novos que têm sua origem nos antigos conceitos. O diálogo com a tradição e a contemporaneidade leva à qualificação; a Arte Espirita, portanto, só alçará o vôo da borboleta a partir do momento que deixar de estar fechada em si e buscar sua qualificação mediante seu enriquecimento cultural. Tal enriquecimento deve partir de cada artista, dentro de sua própria área de atuação.
Gláucio Cardoso
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
O ELIOT, T. S. A tradição e o talento individual (Tradition and the Individual Talent). Trad. de Fernando de Mello Moser: 2a ed. Lisboa: Guimarães Editores, I997.
KARDEC, Allan. Obras Póstumas (Oeuvres Posthumes). Trad. De Guillon Ribeiro. 22a ed. Rio de Janeiro: FEB, 1987.
PAZ, Octavio. Os filhos do barro (Los hijos del limo). Trad. de Olga Savary.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
OBRAS PÓSTUMAS
Allan kardec
Influência perniciosa das ideias materialistas
Sobre as artes em geral; sua regeneração pelo Espiritismo
O Espírito não pode se identificar senão com aquilo que sabe, ou que crê ser uma verdade, e essa verdade, mesmo moral, torna-se para ele uma realidade que exprime tanto melhor quanto a sente melhor; e então, se à inteligência ele junta a flexibilidade do talento, faz passar as suas próprias impressões nas almas dos outros; quais impressões, contudo, pode provocar aquele que não as tem?
A realidade, para o materialista, é a Terra: seu corpo é tudo, uma vez que fora dele nada há, uma vez que mesmo o seu pensamento se extingue com a desorganização da matéria, como o fogo com o combustível. Ele não pode traduzir, para a linguagem da arte, senão o que vê e o que sente; ora, se não vê e não sente senão a matéria tangível, não pode transmitir outra coisa. Onde não vê senão o vazio, não pode nada haurir.
Se se aventura nesse mundo desconhecido para ele, ali entra como um cego e, apesar de seus esforços para se elevar ao diapasão do ideal, permanece sobre o terra-a-terra como um pássaro sem asas.
A decadência da arte, neste século, é o resultado inevitável da concentração das ideias sobre as coisas materiais, e essa concentração, a seu turno, é o resultado da ausência de toda crença na espiritualidade do ser. O século não colhe senão o que semeou. Quem semeia pedras não pode recolher frutas.
As artes não sairão de seu torpor senão por uma reação para as idéias espiritualistas.
E como o pintor, o poeta, o literato, o músico, poderiam ligar seu nome a obras duráveis, quando, para a maioria, não crêem eles mesmo no futuro de seus trabalhos; quando não percebem que a lei do progresso, essa força invencível que arrasta atrás de si os Universos sobre os caminhos do infinito, lhes pede mais que pálidas cópias de criações magistrais dos artistas do tempo passado. Lembra-se dos Fídias, dos Apeles, dos Rafaéis, dos Migueis Ângelos, faróis luminosos que se destacam na obscuridade dos séculos decorridos, como brilhantes estrelas no meio de profundas trevas; mas quem pensa anotar o clarão de uma lâmpada lutando contra o brilhante Sol de um belo dia de verão?
O mundo caminha a passos de gigante desde os tempos históricos; as filosofias dos povos primitivos se transformaram gradualmente. As artes, que se apoiam sobre as filosofias, que delas são a consagração idealizada, deveram elas também se modificar e se transformar. É matematicamente exato dizer que, sem crença, as artes não têm, vitalidade possível, e que toda transformação filosófica conduz, necessariamente, a uma transformação artística paralela.
Em todas as épocas de transformações, as artes periclitam, porque a crença sobre a qual se apóiam não é mais suficiente para as aspirações aumentadas da Humanidade, e que os princípios novos, não sendo ainda adotados de maneira definitiva pela grande maioria dos homens, os artistas não ousam explorar, senão hesitantes, a mina desconhecida que se abre sobre os seus passos.
Durante as épocas primitivas, em que os homens não conheciam senão a vida material, onde a filosofia divinizava a Natureza, a arte procurou, antes de tudo, a perfeição da forma. A beleza corpórea era, então, a primeira das qualidades; a arte dedicou-se a reproduzi-la, a idealizá-la.
Mais tarde, a filosofia entrou num caminho novo; os homens, progredindo, reconheceram, acima da matéria, uma força criadora e organizadora, recompensando os bons, punindo os maus, fazendo da caridade uma lei, um mundo novo, um mundo moral se edifica sobre as ruínas do antigo mundo.
Dessa transformação nasceu uma arte nova, que fez palpitar a alma sob a forma e acrescentou, à perfeição plástica, a expressão de sentimentos desconhecidos dos antigos.
O pensamento viveu sob a matéria; ele, porém, revestiu as formas severas da filosofia cuja arte inspirava. Às tragédias de Ésquilo, aos mármores de Milo, sucederam as descrições e as pinturas de torturas físicas e morais dos condenados. A arte se eleva; reveste um caráter grandioso e sublime, mas sombrio ainda. Está, com efeito, toda inteira na pintura do inferno e do céu da Idade Média, de sofrimentos eternos, ou de uma beatitude tão longe de nós, colocada tão alto, que nos parece quase inacessível; talvez seja porque esta última nos toque tão pouco quando a vemos reproduzida sobre a tela ou sobre o mármore.
Hoje ainda, ninguém poderia contestá-lo, o mundo está num período de transição, sacudido entre os hábitos antiquados, as crenças insuficientes do passado, e as verdades novas que lhe são progressivamente reveladas.
Como a arte cristã sucedeu a arte pagã transformando-a, a arte espírita será o complemento da transformação da arte cristã. O Espiritismo nos mostra, com efeito, o futuro sob uma luz nova e mais ao nosso alcance; por ele, a felicidade está mais perto de nós, está ao nosso lado, nos Espíritos que nos cercam e que jamais deixaram de estar em relação conosco.
A morada dos eleitos, a dos condenados, não estão mais isoladas; há solidariedade incessante entre o céu e a Terra, entre todos os mundos de todos os Universos; a felicidade consiste no amor mútuo de todas as criaturas chegadas à perfeição, e numa constante atividade tendo por objetivo instruir e conduzir, a essa mesma perfeição, aqueles que estão atrasados. O inferno está no próprio coração do culpado que encontra o castigo nos seus remorsos, mas não é eterno, e o mau, entrando no caminho do arrependimento, reencontra a esperança, este sublime consolo dos infelizes.
Que fontes inesgotáveis de inspiração para a arte! Quantas obras-primas, de todos os gêneros, as idéias novas não poderiam produzir, pela reprodução das cenas tão múltiplas e tão variadas da vida espírita! Em lugar de representar os despojos frios e inanimados, ver-se-á a mãe tendo ao seu lado a sua filha querida, na sua forma radiosa e etérea: a vítima perdoa o seu carrasco; o criminoso fugindo em vão do espetáculo, sem cessar renascente, de suas ações culposas! O isolamento do egoísta e do orgulhoso, no meio da multidão; a perturbação do Espírito nascendo na vida espiritual, etc., etc.; e se o artista quer se elevar acima da esfera terrestre, nos mundos superiores, verdadeiros Édens onde os Espíritos avançados gozam da felicidade adquirida, ou reproduzir algumas cenas dos mundos inferiores, verdadeiros infernos onde as paixões reinam soberanas, quantas cenas emocionantes, quantos quadros palpitantes de interesse não haverá para se reproduzir!
Sim, certamente, o Espiritismo abre à arte um campo novo, imenso e ainda inexplorado; e quando o artista reproduzir o mundo espírita com convicção, haurirá nessa fonte as mais sublimes inspirações, e o seu nome viverá nos séculos futuros, porque às preocupações materiais e efêmeras da vida presente, substituirá o estudo da vida futura e eterna da alma.
A música espírita
Recentemente, na sede da Sociedade Espírita de Paris, o Presidente me deu a honra de pedir a minha opinião sobre o estado atual da música e sobre as modificações que lhe poderiam trazer a influência das crenças espíritas. Se não me entreguei em seguida a esse benevolente e simpático pedido, crede-o bem, senhores, que só uma causa maior motivou a minha abstenção.
Os músicos, meu Deus! são homens como os outros, mais homens talvez, e, a esse título, são fracos e pecáveis. Não fui isento de fraquezas, e se Deus me fez a vida longa, a fim de me dar o tempo de me arrepender, a embriaguez do sucesso, a complacência dos amigos, a bajulação dos aduladores, frequentemente, disso me retiraram a possibilidade. Um maestro é uma força, neste mundo onde o prazer desempenha tão grande papel. Aquele cuja arte consiste em seduzir os ouvidos, a comover o coração, vê muitas armadilhas se criarem sob os seus passos, e nelas cai, o infeliz! Embriaga-se com a embriaguez dos outros; os aplausos lhe tapam os ouvidos, e vai direto ao abismo, sem procurar um ponto de apoio para resistir ao arrastamento.
Entretanto, apesar dos meus erros, eu tinha fé em Deus; acreditava na alma que vibrava em mim e, desligado de sua carga sonora, ela depressa reconheceu-se no meio das harmonias da criação e confundiu a sua prece com aquelas que se elevam da Natureza ao infinito da criação, ao Ser incriado!….
Estou feliz pelo sentimento que provocou a minha vinda entre os espíritas, porque foi a simpatia que a ditou, e, se a curiosidade de início me atraiu, é ao meu reconhecimento que devereis a minha apreciação da questão que me foi colocada.
Eu estava lá, prestes a partir, crendo tudo saber, quando o meu orgulho caindo me revelou minha ignorância. Eu permanecia mudo, e escutava: retornei, instruí-me, e quando, às palavras de verdade emitidas pelos vossos instrutores, se juntaram a reflexão e a meditação, eu disse a mim: O grande maestro Rossini, o criador de tantas obras de arte, segundo os homens, não fez, ai de mim! Se não debulhar algumas das pérolas menos perfeitas do escrínio musical criado pelo Mestre dos mestres. Rossini juntou notas, compôs melodias, saboreou no copo que contém todas as harmonias; furtou algumas centelhas ao fogo sagrado, mas esse fogo sagrado, nem ele nem outros não o criaram! – Não inventamos nada: copiamos do grande livro da Natureza e a multidão aplaude quando não deformamos muito a partitura.
Uma dissertação sobre a música celeste! Quem poderia disso se encarregar? Que Espírito sobre-humano poderia fazer vibrar a matéria em uníssono dessa arte encantadora! Que cérebro humano, que Espírito encarnado poderia dela apreender as nuanças variadas ao infinito?… Quem possui, nesse ponto, o sentimento da harmonia?… Não, o homem não está feito para semelhantes condições!… Mais tarde?… bem mais tarde!…
Esperando, talvez venha logo satisfazer ao vosso desejo e vos dar a minha apreciação sobre o estado atual da música, e dizer-vos das transformações, dos progressos que o Espiritismo poderá nela introduzir. – Hoje é muito cedo ainda.
O assunto é vasto, já o estudei, mas me excede ainda; quando nele for mestre, se todavia a coisa for possível, ou melhor, quando tiver entrevisto tanto quando o estado de meu Espírito mo permitirá, eu vos satisfarei; mas ainda um pouco de tempo. Se um músico pode falar sozinho da música do futuro, deve fazê-lo como mestre, e Rossini não quer, dela falar como um escolar.
ROSSINI
(Médium, Sr. Desliens).
O silêncio que guardei sobre a questão que o Mestre da Doutrina Espírita me dirigiu, foi explicado. Era conveniente, antes de abordar esse difícil assunto, me recolher, me lembrar, e condensar os elementos que estão sob a minha mão. Eu não tinha, que estudar a música, tinha somente que classificar os argumentos com método, a fim de apresentar um resumo capaz de dar a ideia de minha concepção sobre a harmonia. Esse trabalho, que não fiz sem dificuldade, está terminado, e estou pronto a submetê-lo à apreciação dos espíritas.
A harmonia é difícil de definir; frequentemente, confundem-na com a música, com os sons resultantes de um arranjo de notas, e de vibrações de instrumentos produzindo esse arranjo. Mas a harmonia não é, isso, não mais do que a chama não é a luz. A chama resulta da combinação de dois gases, é tangível; a luz que ela projeta é um efeito dessa combinação, e não a própria chama: ela não é tangível. Aqui, o efeito é superior à causa. Assim ocorre com a harmonia; ela resulta de um arranjo musical, é um efeito que é igualmente superior à causa: A causa é brutal e tangível; o efeito é sutil e não é tangível.
Pode-se conceber a luz sem chama e compreende-se a harmonia sem música. A alma está apta a perceber a harmonia fora de todo concurso de instrumentação, como está apta para ver a luz fora de todo concurso de combinações materiais. A luz é um sentido íntimo que a alma possui: quanto mais esse sentido está desenvolvido, melhor ela percebe a luz. A harmonia é igualmente um sentido íntimo da alma: ela é percebida em razão do desenvolvimento desse sentido. Fora das causas tangíveis, a luz e a harmonia são de essência divina; são as possuídas em razão dos esforços que se fazem para adquiri-las. Se comparo a luz e a harmonia, é para melhor me fazer compreender, e porque também esses dois sublimes gozos da alma são filhos de Deus e, por conseguinte, irmãos.
A harmonia do espaço é tão complexa, tem tantos graus que conheço, e muito mais ainda que me estão ocultos no éter infinito, que aquele que está colocado numa certa altura de percepções, está como saído do espanto contemplando essas harmonias diversas, que constituiriam, se estivessem reunidas, a mais insuportável cacofonia; ao passo que, ao contrário, percebidas, separadamente, constituem a harmonia particular a cada grau. Essas harmonias são elementares e grosseiras nos graus inferiores; levam ao êxtase nos graus superiores. Tal harmonia que fere um Espírito de percepções sutis, extasia um Espírito de percepções grosseiras; e quando é dado, ao Espírito inferior se deleitar nas delícias das harmonias superiores, o êxtase o toma e a prece entra nele; o arrebatamento o transporta para as esferas elevadas do mundo moral; ele vive de uma vida superior à sua e gostaria de viver sempre assim. Mas quando a harmonia cessa de penetrá-lo, ele desperta, ou, querendo-se, ele adormece; em todos os casos, retorna à realidade de sua situação, e, nos lamentos que deixa escapar por ter descido, se exala uma prece ao Eterno, para pedir a força de subir. É para ele um grande motivo de estímulo.
Eu não tentaria dar a explicação dos efeitos musicais que o Espírito produz agindo sobre o éter; o que é certo é que o Espírito produz os sons que quer, e que não pode querer o que não sabe. Ora, portanto, aquele que compreende muito, que tem nele a harmonia, que dela está saturado, que goza, ele mesmo, de seu sentido íntimo, desse nada impalpável, dessa abstração que é a concepção da harmonia, age quando quer sobre o fluido universal que, instrumento fiel, reproduz o que o Espírito concebe e quer. O éter vibra sob a ação da vontade do Espírito; a harmonia que este último traz em si se concretiza, por assim dizer, ela se exala doce e suave como o perfume da violeta, ou ruge como a tempestade, ou ela explode como o raio, ou se lamenta como a brisa; é rápida como o relâmpago, ou lenta como a nuvem; é quebrada como um soluço, ou unida como uma relva; é desgrenhada como uma catarata, ou calma como um lago; murmura como um regato ou ronca como uma torrente. Ora tem a aspereza agreste das montanhas, ora a frescura de um oásis; ela é alternativamente triste e melancólica como a noite, jovem e alegre como o dia; é caprichosa como a criança, consoladora como a mãe e protetora como o pai; é desordenada como a paixão, límpida como o amor, e grandiosa como a Natureza.
Quando ela está neste último termo, confunde-se com a prece, glorifica Deus, e coloca no arrebatamento aquele mesmo que a produz ou a concebe.
Ó comparação! Comparação! Por que é necessário ser obrigado a te empregar! Por que é necessário se dobrar às tuas necessidades degradantes e emprestar, à natureza tangível, imagens grosseiras para fazer conceber a sublime harmonia na qual o Espírito se deleita. E ainda, apesar das comparações, não se pode fazer compreender essa abstração que é um sentimento íntimo quando ela é causa, e uma sensação quando se torna efeito.
O Espírito que tem o sentimento íntimo da harmonia é como o Espírito que tem a aquisição intelectual; ele goza constantemente, um e o outro, da propriedade inalienável que amontoaram. O Espírito inteligente, que ensina a sua ciência àqueles que ignoram, sente a felicidade de ensinar porque torna felizes aqueles a quem instrui; o Espírito que faz o éter ressoar com acordes da harmonia que está nele, experimenta a felicidade de ver satisfeitos aqueles que o escutam.
A harmonia, a ciência e a virtude são as três concepções do Espírito; a primeira o extasia, a segunda o esclarece, a terceira o eleva. Possuídas em suas plenitudes, elas se confundem e constituem a pureza. Ó Espíritos puros que as contendes! Descei às nossas trevas e clareai a nossa marcha; mostrai-nos o caminho que tomastes, a fim de que sigamos as vossas pegadas!
E quando penso que esses Espíritos, dos quais posso compreender a existência, são seres finitos, átomos, em face do Senhor universal e eterno, minha razão fica confundida pensando na grandeza de Deus e da felicidade infinita que saboreia em si mesmo, pelo único fato de sua pureza infinita, uma vez que tudo o que a criatura adquire não é senão uma parcela que emana do Criador. Ora, se a parcela chega a fascinar pela vontade, a cativar e a deslumbrar pela suavidade, a resplandecer pela virtude, que deve produzir, pois, a fonte eterna e infinita de onde ela é tirada? Se o Espírito, ser criado, chega a haurir em sua pureza tanto de felicidade, que idéia se deve ter daquela que o Criador possui em sua pureza absoluta? Eterno problema!
O compositor que concebe a harmonia a traduz na grosseira linguagem que se chama música; concretiza a sua ideia, ele escreve. O artista estuda a forma e agarra o instrumento que permite representar a ideia. O ar, posto em movimento pelo instrumento, leva-a ao ouvido que a transmite à alma do ouvinte. Mas o compositor ficou impossibilitado de representar inteiramente a harmonia que concebera, por falta de uma linguagem suficiente; executando-a, por sua vez, não compreendeu toda a ideia escrita, e o instrumento indócil, do qual se serve, não lhe permite traduzir tudo o que ele compreendeu. O ouvido é ferido por um ar grosseiro que o cerca, e a alma recebe, enfim, por um órgão rebelde, a horrível tradução da ideia nascida na alma do maestro. A ideia do maestro era o seu sentimento íntimo, embora desvirtuada pelos agentes de instrumentação e de percepção, ela produziu, entretanto, sensações naqueles que o ouviram traduzir; essas sensações são a harmonia. A música as produziu: elas são o efeito desta última. A música é posta a serviço do sentimento para produzir a sensação. O sentimento, no compositor, é a harmonia; a sensação, no ouvinte, é também harmonia, com esta diferença de que ela é concebida por um e recebida pelo outro. A música é o médium da harmonia, ela a recebe e a dá, como o refletor é o médium da luz, como tu és o médium dos Espíritos. Ela a torna mais ou menos desvirtuada segundo seja mais ou menos executada, como o refletor devolve mais ou menos bem a luz segundo seja mais brilhante e polido, como o médium exprime mais ou menos os pensamentos dos Espíritos, segundo ele seja mais ou menos flexível.
E agora que a harmonia está bem compreendida em sua significação, que se sabe que ela é concebida pela alma e transmitida à alma, compreender-se-á a diferença que há entre a harmonia da Terra e a harmonia do espaço.
Entre vós, tudo é grosseiro: o instrumento de tradução e o instrumento de percepção; entre nós tudo é sutil: tendes o ar, nós temos o éter; tendes o órgão que obstrui e obscurece; entre nós, a percepção é direta, e nada a obscurece. Entre vós, o autor é traduzido; entre nós ele fala sem intermediário, e na língua que exprime todas as concepções. E, todavia, essas harmonias têm a mesma fonte, como a luz da Lua tem a mesma fonte que a do Sol, a harmonia da Terra não é senão o reflexo da harmonia do espaço.
A harmonia é tão indefinível quanto a felicidade, o medo, a cólera: é um sentimento. Não é compreendida senão quando possuída, e não é possuída senão quando adquirida. O homem que é alegre não pode explicar a sua alegria; aquele que tem medo não pode explicar o seu medo; eles podem dizer os fatos que provocam esses sentimentos, defini-los, descrevê-los, mas os sentimentos restam inexplicados. O fato que causa a alegria de um não produzirá nada sobre o outro; o objeto que ocasiona o medo de um produzirá a coragem de outro. As mesmas causas são seguidas de efeitos contrários; em física não é assim, em metafísica isso existe. Isso existe porque o sentimento é a propriedade da alma, e que as almas diferem entre si de sensibilidade, de impressionabilidade, de liberdade. A música, que é a causa segunda da harmonia percebida, penetra e transporta um e deixa o outro frio e indiferente. É que o primeiro está em estado de receber a impressão que produz a harmonia, e que o segundo está num estado contrário; ele ouve o ar que vibra, mas não compreende a idéia que lhe transporta. Este chega ao aborrecimento e adormece, aquele ao entusiasmo e chora.
Evidentemente, o homem que gosta das delícias da harmonia é mais elevado, mais depurado, do que aquele que ela não pode penetrar; a sua alma está mais apta a sentir; liberta-se mais facilmente, e a harmonia a ajuda a libertar-se; ela a transporta e lhe permite ver melhor o mundo moral. De onde é necessário concluir que a música é essencialmente moralizadora, uma vez que leva a harmonia às almas, e que a harmonia as eleva e as engrandece.
A influência da música sobre a alma, sobre o seu progresso moral, é reconhecida por todo o mundo; mas a razão dessa influência é geralmente ignorada. Sua razão está inteiramente neste fato: que a harmonia coloca a alma sob a força de um sentimento que a desmaterializa. Este sentimento existe em um certo grau, mas se desenvolve sob a ação de um sentimento similar mais elevado. Aquele que está privado desse sentimento, a ele é levado gradativamente: acaba, ele também, por se deixar penetrar e se deixar arrastar no mundo ideal onde esquece, por um instante, os grosseiros prazeres que prefere à divina harmonia.
E agora, se se considera que a harmonia sai do concerto do Espírito, disso se deduzirá que se a música exerce uma feliz influência sobre a alma, a alma, que a concebe, exerce também uma influência sobre a música. A alma virtuosa, que tem a paixão do bem, do belo, do grande, e que adquiriu a harmonia, produzirá obras-primas capazes de penetrar as almas mais blindadas e comovê-las. Se o compositor é terra-a-terra, como representará a virtude que ele desdenha, o belo que ignora e o grande que não compreende? Suas composições serão o reflexo de seus gostos sensuais, de sua leviandade, de sua indiferença. Elas serão ora licenciosas e ora obscenas, ora cômicas, ora burlescas; comunicarão aos ouvintes os sentimentos que exprimirão e perverte-los-ão ao invés de melhorá-los.
O Espiritismo, moralizando os homens, exercerá, pois, uma grande influência sobre a música. Produzirá mais compositores virtuosos, que comunicarão as suas virtudes fazendo ouvir as suas composições.
Rir-se-á menos, chorar-se-á mais; a hilaridade dará lugar à emoção, a fealdade dará lugar à beleza e o cômico à grandiosidade.
Por outro lado, os ouvintes que o Espiritismo terá disposto para receberem facilmente a harmonia, apreciarão, na audição da música séria, um encanto verdadeiro; desdenharão a música frívola e licenciosa que se apodera das massas. Quando o grotesco e o obsceno forem abandonados pelo belo e pelo bem, os compositores dessa ordem desaparecerão; porque, sem ouvintes, nada ganharão, e é para ganhar que eles se sujam.
Oh! sim, o Espiritismo terá influência sobre a música! Como isso seria de outro modo? Seu advento mudará a arte, depurando-a. Sua fonte é divina, sua força a conduzirá por toda a parte onde haja homens para amar, para se elevar e para compreender. Tornar-se-á o ideal e o objetivo dos artistas. Pintores, escultores, compositores, poetas, pedir-lhe-ão as suas inspirações, e ele as fornecerá, porque é rico, é inesgotável.
O Espírito do maestro Rossini, numa nova existência, retornará para continuar a arte que considera como a primeira de todas; o Espiritismo será o seu símbolo e o inspirador de suas composições.
ROSSINI.
(Médium, Sr. Nivart).
[1] Móbil – O que induz, incita ou motiva; causa, motivo, motor